Artigos de Convidados

Artigos

ARTIGO DE CONVIDADO

A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUA APLICAÇÃO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
Alexandre Doria


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a teoria do adimplemento substancial e sua aplicação no contexto do ordenamento jurídico brasileiro. Para isso, foi preciso analisar a estrutura da obrigação, os efeitos do seu inadimplemento, para só assim compreender a teoria do adimplemento substancial e sua incidência no âmbito do Direito Civil e do Direito do Consumidor a partir do princípio da boa-fé objetiva, permitindo uma visualização moderna das obrigações.

Palavras chave: inadimplemento; resolução do contrato; boa-fé objetiva; adimplemento substancial; abuso de direito.

1. INTRODUÇÃO

A edição do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/02) fez com que ordenamento privado brasileiro ingressasse em uma nova era, após todo um processo de desenvolvimento e amadurecimento que teve por estopim a edição da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
Na vigência do CC de 1916, proveniente dos estudos de Clóvis Beviláqua, com forte influência do direito francês pós-revolução, o ordenamento civil se pautava no individualista, na proteção absoluta do patrimônio e vinculação completa e cega ao contrato em decorrência de uma visão rígida do pacta sunt servanda.
Com a entrada em vigor do CC de 2002, houve uma mudança de rumo, o ordenamento passou a ser orientado pelos princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade, valorizando-se o interesse coletivo e os comportamentos probos e leais, além de se ter um sistema composto de cláusulas gerais que devem ser preenchidas pelo operador do direito caso a caso, permitindo uma maior sensibilidade e um sentimento de justiça.
É dentro dessa nova realidade que surge um ambiente favorável à discussão sobre a aplicação da teoria do adimplemento substancial.

2. AS OBRIGAÇÕES E SEU INADIMPLEMENTO

Antes de se adentrar na análise do tema central do presente trabalho, a teoria do adimplemento substancial, imprescindível é pincelarmos o conceito das obrigações, inadimplemento e suas consequências.
O termo “obrigações” está relacionado umbilicalmente às relações jurídicas de natureza pessoal e tem, ao longo de sua evolução histórica, passado por diversos estágios, dos quais podem ser pinçados três momentos principais.
Em um primeiro momento, tinha-se a idéia de obrigação na sua fase pré-romana, período da civilização em que imperava a hostilidade e a desconfiança das relações interpessoais, razão pela qual essas eram estabelecidas entre grupos.
Com o passar do tempo, essa marca coletiva foi sendo substituída pela individualização e personalização das tratativas, até chegarmos ao período romano, momento no qual já se encontra um conceito bastante apurado que permitia distinguir o direito de crédito dos direitos reais: “obligatio est juris vinculum, quo necessitate adstringimur alicujus solvendae rei”.
Dentro do período romano, em um primeiro momento, imperava o extremo formalismo e a “obligatio” tinha caráter pessoal, o devedor respondia com seu próprio corpo no caso de descumprimento. Tal quadro só veio a se alterar com a edição da Lex Poetelia Papiria, datada de 428 a.C., passa-se a projetar a responsabilidade pelo descumprimento sobre os bens do inadipmplente (pecuniae creditae bona debitoris, non corpus obnoxium esse).
No período medieval, com a ascensão da igreja ao poder, incorporou-se um teor de espiritualidade às obrigações, confundindo-se o pecado com o descumprimento do pactuado.
Todavia, o Direito moderno retoma a noção romana com o Código Civil Napoleônico, o qual, com o foco na igualdade formal, atribuiu um valor extremo à vontade como força geradora do vínculo obrigacional.
E, em meados do século XX, no sentido de conter a importância dada à autonomia da vontade, uma nova concepção se apresenta em busca de assegurar o interesse coletivo e a ordem públic; é o abandono do sonho da igualdade formal e o nascimento da busca por uma igualdade material.
Assim, modernamente, conforme leciona Mário Júlio de Almeida Costa (2001), o termo obrigação pode ser visto em um sentido comum, também denominado de sentido lato, para fazer referência, de forma indiscriminada a deveres e ônus de natureza jurídica ou extrajurídica, bem como pode ser utilizado em seu sentido técnico, fazendo referência a uma denominada classe das relações jurídicas obrigacionais ou creditícias integrante do Direito.
Neste último sentido, podemos afirmar a prestação é o seu elemento nuclear, a qual pode se consistir em uma conduta positiva de entregar ou fazer algo, bem como em uma conduta negativa de se abster de fazer algo (obrigação de dar, fazer ou não fazer). Mas, independentemente de outros fatores, o que se deve ter em mente é que a prestação deverá satisfazer aos interesses das partes envolvidas, que sempre têm uma finalidade econômica como plano de fundo.

Constituindo uma regra geral em matéria de obrigações (as quais constituem o conteúdo e o efeito típico dos contratos: cfr. O art. 1173.º cód. Civ.), o art. 1174º estabelece, de facto, que a prestação que forma objecto das obrigações deve ser suscetível de avaliação econômica e deve corresponder a um interesse, ainda que não patrimonial, do credor. Isto significa, justamente, por outras palavras que aquele que celebra um contrato, bem pode prosseguir subjectivamente, um interesse não econômico (mas sim ideal, moral, cultural), sendo certo que o resultado objectivo do contrato deve, ao invés, consistir na obrigação de fazer ou de dar aquela que coisa susceptível de expressão pecuniária, segundo os valores do mercado, e, portanto, numa qualquer forma de circulação de riqueza, em suma numa operação econômica (ROPPO, 1988, p. 14).
Para tanto, é preciso enxergar o vínculo obrigacional como um todo, como um processo orientado pelo princípio da boa-fé objetiva, o, aceitando a existência de um conjunto de situações jurídicas, como direitos subjetivos, deveres jurídicos, poderes, pretensões, ônus jurídicos, sujeições e exceções, que estão sujeitas a interferências externas do tempo, do espaço, e todas as circunstâncias advindas do contexto em que se desenrola.
tendo em conta que a relação obrigacional envolve não só deveres de prestação, mas também deveres de conduta decorrentes fundamentalmente da boa-fé objetiva (deveres de proteção, de cooperação, de sigilo, de informação etc.) e que não se esgotam no ato de prestar, mas realizam-se no tempo, não se pode dizer que o ato de pagamento represente a plena e total satisfação dos interesses do credor (SILVA, 2007, p. 48).
No que concerne ao inadimplemento, o Código Civil não o define, limitando-se a regulamentar seus efeitos e suas modalidades. À primeira vista, poder-se-ia dizer que o inadimplemento seria a não realização da prestação devida; em outras palavras, afirmar que qualquer das modalidades de adimplemento postas nos artigos 334 a 388 do Código Civil de 2002 não foi alcançada.
Mas tal conceito, ao tratar da prestação, estaria limitando a obrigação principal, passando ao largo das obrigações anexas decorrentes do princípio da boa-fé.
Assim, melhor é dizer que o inadimplemento serve como definição para a situação jurídica em que o indivíduo não cumpriu com uma ou mais obrigações que lhe cabiam nos termos adequados.
Sobre os seus efeitos, cabe invocar as sábias palavras de Pontes de Miranda (2003, p. 31):
Se deve e está obrigado, e não adimple, incorre me mora. Expõe-se a que o credor exerça direito de resolução ou de resilição por inadimplemento. Responde pelas perdas e danos a que sua mora deu causa. Daí a regra jurídica do art. 389 do Código Civil: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetárias segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.
A Lei nº 10.406 (Código Civil de 2002) traz o art. 475, que assim reza: “Art. 475 - A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos” (BRASIL, 2002, sp.).
Assim, conferiu-se ao contratante não inadimplente a faculdade de resolução do contrato ou de exigir do outro, quando ainda for possível, o cumprimento da obrigação avençada, sem prejuízo das perdas e danos (art. 389 do Código Civil de 2002).
3. A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
A teoria do adimplemento substancial nasceu na Inglaterra, no século XVIII, tendo o caso Bonee v. Eyre como leading case, em 1779. Na época, as alegações e o pedido de resolução não foram aceitos pelo Lorde Mansfield, responsável pelo caso, sob o argumento de que a finalidade do quanto ajustado havia sido atingida de forma substancial.
Mas, foi somente em 1952 que se pode constatar a aplicação madura da teoria em questão, no caso Hoenig v. Isaacs; oportunidade em que trat5atou-se como cerne da questão a gravidade do descumprimento observado. Consolidou-se, então, a teoria do substancial performace.
Aplicada esta doutrina, aquele contratante que prestou de forma quase exata (mas não exata) não mais perderia o direito de reclamar o preço, como ocorria por força da regra da Common Law. Se seu adimplemento tivesse sido substancial, ainda que imperfeito, teria direito à contraprestação, resguardado o direito do credor em exigir-lhe o ressarcimento dos prejuízos causados pela imperfeição e/ou a parte faltante. Um desvio significativo do que fora estipulado no contrato não mais justificaria sua resolução e a consequente perda de toda a prestação por parte daquele que adimpliu inexatamente, mas substancialmente (BUSSATA, 2008, p. 42).
O adimplemento substancial está alicerçado em princípios jurídicos. Muitos são os elencados pela doutrina: preservação dos contratos, igualdade jurídica, sinalagma contratual, boa-fé objetiva, liberdade contratual, dentre outros.
Dentre esses, dois são os princípios que merecem destaque, pois funcionam como pilares centrais dessa teoria: o da preservação dos contratos e o da boa-fé objetiva.
O princípio da preservação dos contratos, também denominado de princípio da conservação dos contratos, pugna que, sempre que possível, os contratos devem ser preservados, por serem elementos que criam riquezas e as fazem circular. Com isso, criam-se condições favoráveis para o desenvolvimento econômico e social e, na sua última dimensão, impulsionam a promoção do ser humano.
Por sua vez, o princípio da boa-fé objetiva possui raízes germânicas, não se relaciona com elementos anímicos do sujeito, mas sim com a exigência de comportamento adequado aos parâmetros de probidade, lealdade, honestidade e colaboração com o foco em alcançar os fins almejados quando da celebração do negócio jurídico, estabelecendo um padrão comportamental.
Das três funções atribuídas pela doutrina majoritária à boa-fé objetiva, a limitadora é a que mais nos interessa, também conhecida na doutrina como “função limitadora de direitos subjetivos” ou “função de controle”. Clóvis Couto e Silva (2008) a denomina de “função defensiva”.
A função limitadora tem uma relação umbilical com a teoria em debate no presente trabalho, uma vez que esta é uma das formas de manifestação daquela, funcionando como limitação ao direito da parte não inadimplente de resolver o contrato em situações especificas, nas quais a utilização de tal direito se mostre abusiva, na medida em que contraria os interesses econômico-sociais.
Dessa forma, pode-se afirmar que o adimplemento substancial tem por finalidade a preservação do vínculo contratual pactuado nos casos em que uma das partes inadimpliu com sua obrigação minimamente em relação ao todo que lhe cabia, impedindo o desfazimento do negócio jurídico e mitigando, assim, a regra posta na maioria dos ordenamentos jurídicos de resolução dos contratos quando do inadimplemento.
Não se pode admitir que a parte tenha benefício com o cumprimento do contrato, tendo alcançado os fins econômico-sociais dele esperados e, por conta do inadimplemento de uma fração ínfima resolva o negócio jurídico, expondo a outra parte a uma situação de desequilíbrio excessivo; dado ao direito de resolver o contrato função e efeito conflitantes com a moderna leitura do direito privado.
Todavia, a parte não inadimplente da relação jurídica não perde o direito que tem sobre a fração da obrigação não adimplida, mantendo o direito à execução forçada, bem como, em sendo o caso, a reparação pelos danos eventualmente ocorridos em decorrência do inadimplemento mínimo.
Para que se faça incidir, há doutrinadores que defendem a existência de cinco requisitos distintos de aplicação, sendo eles: imprevisibilidade, utilidade da prestação, gravidade do inadimplemento, proporcionalidade entre o dever ser e o ser e o interesse do credor na manutenção do contrato.
De outro modo, outros levam em consideração apenas o requisito da gravidade, incutindo os demais elementos dentro da sua análise.Filiamo-nos a essa segunda corrente.
Portanto, só se aplicaria a teoria do adimplemento substancial quando o inadimplemento fosse tido como não grave ou de baixa gravidade; caso contrário, vigoraria a regra geral posta nos ordenamentos, que autoriza a resolução do contrato a pedido do credor.
A análise da gravidade do inadimplemento tem de ser feita caso a caso, com base em critérios objetivos, afastando-se de qualquer critério subjetivo que dependa de ilações relacionadas à vontade da parte não inadimplente
Eduardo Luiz Bussata afirma que “o critério a ser utilizado deve ter em conta a economia do contrato, a globalidade da relação existente e o desequilíbrio ocasionado pelo descumprimento” (2008, p. 109). Em outras palavras, o julgamento da análise da gravidade do inadimplemento passa pela averiguação da utilidade da prestação cumprida, o interesse do credor na manutenção do contrato e a proporcionalidade entre o dever ser e o ser.
A verificação da utilidade da prestação cumprida pela parte inadimplente é essencial à análise da gravidade do inadimplemento na medida em que, não havendo benefício algum ao credor com a parcela da prestação já executada, não há como se posicionar pela preservação do contrato, pois, de fato, houve um inadimplemento.
A utilidade haverá de ser constada nos casos em que as obrigações assumidas são prestadas de forma tão substancial que atinjam a maior parte dos interesses da parte não inadimplente, que usufruirá dos direitos advindos da parcela já executada da prestação para fins propostos.
É muito importante se ter em mente que, para a configuração do adimplemento substancial, não é suficiente a análise do elemento quantitativo que venha a envolver o caso prático. Há, também, que se visualizar o caso sob a ótica da parte não inadimplente, a qual terá, eventualmente, o direito de resolução do contrato mitigado. “Entretanto, não é a valoração subjetiva que o credor faz do seu próprio interesse. Este deve ser avaliado de acordo com a função econômica-social do contrato, trazendo a lume a causa do contrato [...]” (BUSSATA, 2008, p. 112).
Elemento de muita valia na constatação da gravidade do inadimplemento e, consequentemente, quando da aplicação ou não do adimplemento substancial, é o que se refere ao quantum que foi adimplido, o percentual do todo. Há que se levar em conta a análise da proporcionalidade entre o que estava previsto no contrato e o quanto dele foi efetivamente realizado.
Na prática, apesar de alguns posicionamentos destoantes na doutrina e jurisprudência, tal mensuração tem levado ao entendimento de que o cumprimento de 80% ou mais da obrigação seria um indicativo da aplicação do adimplemento substancial.
Contudo, deve-se alertar para o fato de que, apesar de a verificação do quanto foi cumprido ser elemento de importância ímpar na investigação da gravidade do inadimplemento, talvez o mais importante, ele não pode, de forma alguma, ser confundido com a gravidade, a qual, como já visto, é composta de outros dois elementos: a utilidade da prestação e interesse do credor na manutenção do contrato.
A demonstração clara de que o elemento quantitativo não exaure a análise da gravidade do inadimplemento está no exemplo do bolo de casamento que é entregue em atraso, horas após o ajustado. Pelo critério puramente quantitativo, sequer se falaria em inadimplemento. Todavia, no caso posto, o inadimplemento da obrigação no tempo faz com que, apesar de cumprido 100% no seu quantum, a prestação se torne inútil ao credor, que não terá qualquer proveito (interesse) na preservação do contrato.
Em todo o mundo, a teoria do substancial performace ganhou força, seja em países ligados ao sistema jurídico da common law, bem como para países ligados ao sistema jurídico da civil law.
Nos Estados Unidos da América, país filiado ao sistema jurídico do commmon law, via de regra não existam leis ou código. Mas, em situações pontuais esses podem ser editados, e assim foi feito com o Uniform Comercial Code (UCC), responsável pelo regramento geral do regime jurídico dos contratos.
E, segundo esse, caberá ao julgador perquirir se a parcela não executada do contrato causou uma redução substancial do seu valor. Em sendo a resposta positiva, será caso de cancelattion (extinção por inadimplemento); caso contrário deve-se manter o contrato com a busca da prestação originariamente pactuada.
Em países como Itália , Alemanha e Portugal , todos ligados ao sistema jurídico do Civil Law, o respectivo diploma legal traz expressamente a necessidade de se avaliar o inadimplemento posto, para só depois definir se pode ou não a parte não inadimplente resolver o contrato.
Diversamente, o art. 1.124 do Código Civil espanhol não faz qualquer referência a limites ou requisitos incidentes sobre a faculdade da parte credora em resolver o contrato. No entanto, a jurisprudência é firme no sentido de manutenção do contrato nos casos de inadimplemento insignificante, autorizando a resolução somente quando o inadimplemento venha gerar na economia do contrato.
No Brasil, o primeiro jurista a estudar o inadimplemento das obrigações, seus efeitos e a limitação à faculdade de resolução foi Clóvis do Couto e Silva. Na sequência, a doutrina nacional começou a tratar do assunto, utilizando-se de diversas nomenclaturas: adimplemento ruim, adimplemento insatisfatório, cumprimento imperfeito, inadimplemento insignificante.
Como bem detecta Vivien Lys Porto Ferreira da Silva, “observamos que as diferentes nomenclaturas justificam-se talvez em razão do fato da teoria ser oriunda do direito americano, escrito na língua inglesa, ensejando, assim, distintas traduções sob o mesmo instituto jurídico” (2006, p. 90).
Fato é que a nomenclatura adimplemento substancial se mostra como a melhor forma de denominação, na medida em que traz efeitos de como se adimplida tivesse sido a obrigação impedindo a resolução do contrato. A utilização de termos como inadimplemento mínimo traz o foco para o termo inadimplemento, dando uma idéia distinta de tudo aquilo que a teoria de fato invoca e defende.
A maior dificuldade, entretanto, era encontrar no ordenamento um alicerce para invocar o adimplemento substancial. O artigo 1.092 do Código Civil de 1916 não deixava margem à sua aplicação . Da mesma forma era o art. 955 , que tratava da mora.
Mas, mesmo sem esse, a jurisprudência pátria, ainda que de forma minoritária, o fez por meio de interpretação analógica e com base nos princípios do direito obrigacional, em especial o princípio da boa-fé objetiva.
CONTRATO. RESOLUCAO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. O COMPRADOR QUE PAGOU TODAS AS PRESTACOES DE CONTRATO DE LONGA DURACAO, MENOS A ULTIMA, CUMPRIU SUBSTANCIALMENTE O CONTRATO, NAO PODENDO SER DEMANDADO POR RESOLUCAO. ACAO DE RESCISAO JULGADA IMPROCEDENTE E PROCEDENTE A CONSIGNATORIA. APELO PROVIDO EM PARTE, APENAS RELATIVAMENTE AOS HONORARIOS. (Apelação Cível Nº 588012666, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Relator: Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julgado em 12/04/1988).
Com sua nomeação para Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ruy Rosado de Aguiar Jr. manteve seu posicionamento, apresentando à jurisprudência daquele Tribunal Superior a teoria do adimplemento substancial.
A resolução do contrato por inadimplemento do devedor somente pode ser reconhecida se demonstrada e aceita a falta considerável do pagamento devido. Do contrário, a regra é a de que se preserve o contrato, permitindo ao credor ainda insatisfeito a propositura da ação de cobrança do que lhe for devido. É por isso que na legislação estrangeira, no tratado de comércio internacional e também na mais recente doutrina nacional, tem sido admitido que o adimplemento substancial pelo devedor impede a extinção do contrato (REsp 226283/RJ, STJ, 4ª T., Voto Vencido, Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 27.08.2001).
Estava claro que o quanto posto na letra do Código Civil de 1916, com forte influência individualista, não mais atendia aos anseios jurídicos e sociais de seu tempo. Com o advento do Código Civil de 2002, passa-se a ter dispositivos legais que autorizam a aplicação da teoria em comento, como é o caso do art. 422 , ao positivar a boa-fé objetiva, independentemente de o art. 475 não trazer qualquer referência necessidade de observância da gravidade do inadimplemento.
Por fim, há que se ressaltar que admitir a resolução do contrato em hipóteses de adimplemento substancial vai de encontro ao quanto reza o art. 187 também do Código Civil de 2002.
Há de se considerar, em relação ao credor, a limitação do direito de resolução, na hipótese de adimplemento e o consequente exercício abusivo deste direito (sancionando com ineficácia), quando houver hipótese em que exista o adimplemento substancial da prestação pelo devedor. Ainda que identifique a priori o adimplemento substancial como resultante da boa-fé objetiva, há entendimento que resulta, no direito brasileiro, de concepção vinculada ao solidarismo social, e sob este prisma, à noção de função social do contrato. A hipótese de adimplemento substancial neste sentido, limita o direito do redor a resolução – hipótese em que seu eventual exercício será considerado ineficaz – e dá causa ao direito de manutenção do contrato pelo devedor (MIRAGEM, 2009, p. 214-215).
Exigir a resolução do contrato em situações que a parcela inadimplemento foi mínima, de escassa relevância, nada mais é que um abuso de direito.

4. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO

Vencida a análise da aplicação da teoria do adimplemento substancial à realidade brasileira e constatada sua possibilidade com alicerce no Código Civil de 2002, há que se perquirir se sua incidência está limitada às relações travadas entre iguais, ou se também se coaduna com aquelas relações privadas em que há um desequilíbrio natural entre os contratantes derivado da vulnerabilidade de um deles, o que deve ser corrigido através de normas legais, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor.
Assim, é preciso saber se a principiologia que sustenta a teoria do adimplemento substancial é compatível com os princípios que servem de sustentáculo à proteção do consumidor, permitindo, consequentemente, sua incidência nas relações de consumo.
A relação jurídica de consumo é uma relação de direito privado especial, típica, com elementos peculiares que a diferenciam das demais, e por isso tem toda uma regulamentação específica. A Lei nº 8.078/90 não traz o conceito de relação de consumo, mas conceitua, dentre outras coisas, os elementos que a integram: consumidor, fornecedor, produto e serviço.
Dessa forma, será de consumo toda relação jurídica na qual, em um dos seus pólos, esteja o consumidor e, no outro, o fornecedor, imbuídos do interesse de comercialização de um produto ou serviço.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) reconhece o consumidor como parte vulnerável, mais fraca da relação, aquele que se encontra em situação de inferioridade técnica, econômica e jurídica, razão pela qual deve ter um tratamento diferenciado, a fim de que se alcance a igualdade material, a isonomia; pois “todos tem de ser tratados igualmente na medida em que se igualem e desigualmente na medida em que se desigualem” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 636).
Dessa forma, fica claro que uma das razões de ser do CDC, se não a principal, é a posição de vulnerabilidade em que se encontra o consumidor; a necessidade de afastar o Código Civil e trazer à tona toda uma regulamentação jurídica específica.
Todavia, o fato das relações de consumo terem como marco normativo o CDC não faz com que o Código Civil seja completamente desprezado. Nos tempos pós-modernos, a aplicação desses diplomas não pode acontecer de forma isolada, completamente apartada, eles devem dialogar, se complementar, de forma fluída e flexível, o que é denominado de “diálogo das fontes”, teoria estudada pelo mestre alemão Erik Jayme e importada ao Brasil pela não menos ilustre Cláudia Lima Marques.
Em conformidade com os doutrinadores acima mencionados, são três a formas de diálogo que podem ser travadas entre o Código Civil de 2002 e o CDC (MARQUES, 2005): diálogo sistemático de coerência, diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade em antinomias aparentes ou reais, diálogo de coordenação e adaptação sistemática.
Partindo dessa perspectiva, podemos afirmar que o diálogo existente entre os diplomas em questão é essencial e necessário, na medida em que permite a construção de uma coerência conceitual dentro do direito privado, delimitando o campo de aplicabilidade de cada um deles, sem afastar as influências positivas que um pode prover ao outro, sempre buscando o objetivo específico de cada um deles, que no caso do CDC é a proteção do indivíduo vulnerável, o consumidor.
Neste contexto, a teoria do adimplemento substancial em nada se contrapõe à proteção do consumidor. Some-se isso ao fato de que sua não aplicação nos casos que deveria incidir gera, como já visto, o abuso do direito, o que é rechaçado como ato ilícito no ordenamento pátrio.
Como se observa o abuso de direito passa a relacionar-se expressamente com a função social dos contratos, com a boa-fé objetiva e com os bons costumes. Neste sentido, o espírito é o mesmo do CDC e poderia servir de base conceitual para a idéia de abuso que permeia, implicitamente, as normas do CDC (MARQUES, 2002, p. 51).
Ao lado do “diálogo das fontes”, há que se ressaltar, também, a convergência principiológica existente entre o CC de 2002 e o CDC. O princípio da boa-fé objetiva, um dos pilares do CC de 2002, é princípio basilar do CDC, posto no seu art. 4º, inciso III , fortalecendo a orientação de que a relação jurídica a de se pautar pela solidariedade, por comportamentos probos e leais de ambas as partes.
Importante lembrar que a boa-fé, ao contrário do que muitos imaginam, não se presta a promover a igualdade entre desiguais. Este papel é reservado ao princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor. Caso contrário, em sendo a boa-fé instrumento de re-equilíbrio de relações jurídicas, não haveria de estar presente no Código Civil, o qual é responsável por reger as relações travadas entre iguais.
Desta forma, chega-se ao consenso de que a teoria do adimplemento substancial aplica-se na sua mais completa amplitude às relações de consumo.
Outro não é entendimento dos tribunais, que vêem aplicando amplamente a teoria do adimplemento substancial às relações de consumo em diversos casos e situações. No entanto, em todo o cabedal jurisprudencial só são encontradas decisões reconhecendo os efeitos da teoria do adimplemento substancial em prol do consumidor, não sendo encontrados julgados aplicando a teoria do adimplemento substancial em prol do fornecedor.
A razão para isso pode residir no fato de que, na realidade vivenciada, são os fornecedores que costumam abusar de seu direito creditório, levando ao Poder Judiciário situações nas quais a aplicação da teoria em comento protege aquele que é vulnerável. Mas, tal ocorrência não encontra qualquer razão de ser em impedimentos decorrentes da estrutura da teoria da própria relação de consumo.
As colunas que sustentam a teoria do adimplemento substancial são as mesmas que orientam o Código de Defesa do Consumidor, os princípios da boa-fé objetiva e a função social dos contratos, que não se prestam, em hipótese alguma, a equilibrar a relação de consumo, mas a orientar a atuação de todos aqueles que estão envolvidos na relação, sejam consumidores ou fornecedores, no sentido de se comportarem de forma solidária, leal e proba.
É o princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor que tem o condão de orientar todo trabalho legislativo e hermenêutico no sentido de equilibrar uma relação jurídica naturalmente não paritária: “O legislador consumerista, para atender ao princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, muniu o poder público de meios capazes de amparar o consumidor contra a posição privilegiada do fornecedor.” (TEIXEIRA, 2009, p. 175).
Assim, o adimplemento substancial pode e deve ser aplicada em favor de qualquer uma das partes integrantes da relação de consumo, seja consumidor ou fornecedor.
Consequentemente, como ocorre com o art. 475 do Código Civil de 2002, o qual tem seus efeitos limitados em decorrência da aplicação da teoria do adimplemento substancial, o art. 35 do Código de Defesa do Consumidor, inciso III , também sofrerá o mesmo efeito.
Exemplo que pode ser trazido à baila é o de um consumidor que pactua com uma empresa de construção civil um contrato de compra e venda de imóvel, no qual a oferta especificava o tipo e a qualidade do piso que seriam utilizado nos banheiros. No entanto, quando da entrega do imóvel, o qual tinha perfeitas condições estruturais e de uso, atendendo ao fim que se destina, o consumidor constata que o piso não confere com aquele ofertado.
Nesse caso, a princípio, o fornecedor seria inadimplente em parte das suas obrigações e, portanto, poderia o consumidor, com arrimo no art. 35, III, do CDC, requerer a resolução do contrato. Mas avaliando-se a gravidade do inadimplemento, constatar-se-á sua baixa gravidade, cabendo ao consumidor, exigir o cumprimento forçado da obrigação.
Pode soar estranho aos ouvidos de um operador do direito a afirmação de que o descumprimento do quanto ofertado pelo fornecedor nem sempre gerará ao consumidor o direito à resolução do contrato, conforme estampado no CDC. Mas, a depender do caso concreto, da gravidade do inadimplemento, assim ser, restando ao consumidor exigir o cumprimento forçado da obrigação a qual o fornecedor se vinculou na oferta ou, se assim desejar, aceitar um produto equivalente, sempre havendo a possibilidade da reparação por eventuais perdas e danos.

5. CONCLUSÃO

O reconhecimento da teoria do adimplemento substancial e a necessidade de sua aplicação decorrem da realidade jurídica hodierna, que busca se afastar de uma visão egoísta que privilegia de forma quase que absolta a autonomia da vontade.
Com base no princípio da boa-fé objetiva, bem como nos princípio da função social e da preservação dos contratos, todo operador do direito, ao se debruçar sobre uma situação em que uma das partes contratantes não cumpriu com aquilo que se obrigou, deve proceder a uma análise da gravidade do inadimplemento sub examine antes de concluir quais as consequências práticas que dela decorrerão e afirmar que se aplica o quanto previsto no art. 475 do CC de 2002.
Para isso, contará com critérios objetivos que o guiarão à conclusão de se as finalidades econômico-sociais que levaram as partes a ajustar aquele negócio jurídico se mantêm preservadas ou não, se a prestação cumprida foi útil à parte não inadimplente, se o percentual executado aproxima-se do ajustado, se há interesse na preservação do contrato.
Em diversos países a teoria do adimplemento substancial é uma realidade amplamente difundida entre os operadores do Direito, independentemente de estar vinculado ao common law ou ao civil law ou de se ter um dispositivo específico no ordenamento estipulando a necessidade de aferir a gravidade do inadimplemento antes mesmo de se conferir o direito resolutório à parte não inadimplente.
Negar aplicabilidade à teoria do adimplemento substancial é dar guarida a condutas qualificadas como ato ilícito pelo art. 187 do CC de 2002. É admitir que aquele que não inadimpliu utilize de forma abusiva uma das ferramentas trazidas pelo ordenamento, incorrendo em abuso de direito.
Relativamente à possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial no campo consumerista, é plena sua incidência, nos mesmos moldes que incidem nas relações entre iguais, observando os mesmos requisitos de aplicabilidade; seja em prol do consumidor ou em favor do fornecedor, sem que haja qualquer prejuízo à busca incessante que se tem de equilibrar uma relação que por natureza não se dá entre pares.
Resta latente, portanto, que o reconhecimento da teoria do adimplemento substancial no sistema jurídico brasileiro, seja nas relações entre pares ou naquelas que envolvem desiguais, faz com que mudem os valores observados na execução de um contrato, afastando-se de tendências doutrinárias ultrapassadas que não mais se coadunam com a realidade presente de harmonização dos interesses em torno de um só fim: o adimplemento das obrigações assumidas na busca de fins e interesses específicos.

REFERÊNCIAS

ALEMANHA. Burgerliches Gesetzbuch (BGB). Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2011.

BRASIL. Lei nº 3.071 de 01 de jan de 1916. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L3071.htm>. Acesso em 23 jan. 2011.

______. Lei nº 8.078, de 11 de set de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2011.

______. Lei nº 10.406, de 10 de jan de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2011.

BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. Coleção Prof. Agostinho Alvim. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 9. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2001.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 1. ed. Salvador: JusPODIVM, 2008. Navarra: Thompson Civitas, 2007.

ESPANHA. Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 09 de jan. 2010.

ITÁLIA. Codice Civile. Disponível em < http://www.jus.unitn.it/cardozo/obiter_ dictum/codciv/Codciv.htm>. Acesso em 23 jan. 2011.

MARQUES, Cláudia Lima. Três tipos de diálogos entre o código de defesa do consumidor e o código civil de 2002: superação das antinomias pelo “diálogo das fontes”. In: PFEIFFER, Roberto A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, V, p. 11-82.

MIRAGEM, Bruno. Abuso de direito: proteção da confiança e limite ao exercício das prerrogativas jurídicas no direito privado. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: T. 26. Atual. Por Vilson Rodrigues Alves, em conformidade com o Código Civil de 2002. Campinas: Editora Bookseller, 2003.

PORTUGAL. Código Civil Português. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2010.

ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988.

SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.

SILVA, Jorge Cesar Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações. In: REALE, Miguel, e MARTINS-COSTA, Judith (Coords.). Coleção biblioteca de direito civil: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. São Paulo: Editora RT, 2007, v. 6.

SILVA, Vivien Lys Porto Ferreira da. Adimplemento Substancial. 2006. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2010.

TEIXEIRA, Odemir Bilhalva. Aspectos principiológicos do código de defesa do consumidor. 1 ed. Campinas: Russel Editores, 2009.




Parece cômico mas é trájica a forma como os consumidores são tratados. Vejam o vídeo do link http://www.youtube.com/results?search_query=pedro+cardoso+telemarketing&aq=2.



SUPERENDIVIDAMENTO

Amigos, como estou estudando SUPERENDIVIDAMENTO para minha tese doutoral, segue um breve resumo para quem quer se iniciar no tema.
Abs.


SUPERENDIVIDAMENTO

1. CONCEITO – Situação patrimonial daquele que possui mais de um credor, sendo o total da sua dívida superior ao seu patrimônio e sua capacidade financeira.
2. TIPOS:
a) SUPERENDIVIDADO ATIVO (procura a dívida)- Divide-se em superendividado de má- fé (aquele que contraia dívidas voluntariamente, com a intenção de para não pagar depois) e superendividado de boa-fé (aquele que busca a dívida com a intenção de pagá-la mais superestima sua capacidade financeira ou sofre influencia do consumismo).
O superendividado ativo de boa-fé que superestima sua capacidade contrai dívidas além do que pode pagar, pois acha que “vai dar um jeito” ou que “Deus proverá”; também conta com pagamentos ou recebimentos extras em sua receita, que nem sempre acontecem. Ao invés de poupar para comprar, gasta antes de ter o dinheiro, contando com uma possibilidade futura, que muitas vezes não acontece. Este tipo de consumidor deve participar de oficinas de orçamento doméstico, para aprender a calcular seus gastos e a medir de forma real a sua capacidade financeira.
O superendividado ativo de boa-fé que compra por consumismo também merece atenção especial. Consumismo significa consumir por consumir, e não para sobreviver. Consiste na compra por impulso, por ansiedade, pela falta de algo que não se sabe de que. O consumidor consumista desconta na fugaz sensação prazerosa da compra (prazer do ter, do possuir, do acumular coisas) uma série de frustrações pessoais, familiares, psicológicas, etc. Geralmente são pessoas que necessitam de apoio psicológico para superar suas dificuldades de forma saudável. Ao invés de enfrentar de frente o problema que o atormenta, este consumidor compra para “esquecer” o problema, e geralmente se descontrola nas finanças. A pessoa neste estado não precisa do bem adquirido para satisfação de nenhuma necessidade vital, mas para aliviar sua consciência, tenta se convencer de que compra porque precisa do bem, ou que este vai ajudá-lo a superar alguma dificuldade, quando em verdade está apenas se iludindo.
Neste tocante, são alvos fáceis do consumismo, os adolescentes e jovens, que consomem para pertencer a algum grupo, para demonstrar status social na sua comunidade ou para promover sua auto-afirmação. A mídia facilmente os convence de que para ser alguém e ser aceito pelo grupo/sociedade é preciso ter algo; as pessoas valem pelo que tem, e não pelo que são. A resposta está sempre do lado de fora da pessoa. È preciso ter o tênis da moda para ser atraente, a calça de marca para ser respeitado, etc.
O superendividado afetado pelo consumismo precisa de acompanhamento psicológico, conscientização de que precisa sair desta situação de vítima do consumismo, bem como, em um momento posterior, de cursos de orçamento domésticos. Em geral pedem medidas extremas como quebra de cartões de crédito e destruições de talões de cheque.

b) SUPERENDIVIDADO PASSIVO (não busca a dívida) – Fica ocasionalmente neste estado em função de dificuldade financeira pontual, em geral causada por fatos imprevistos como morte ou doença na família, desemprego, divórcio, etc.
Este tipo de consumidor, em geral, sabe organizar bem suas finanças, devendo participar de oficinas de orçamento domésticas apenas para aprender a fazer um fundo de reserva para situações imprevistas.
3. GRAUS:
É preciso atentar para a prevenção; algumas pessoas apesar de possuírem dívidas ainda não se enquadram como superendividados, facilitando o tratamento. Para o consumidor que possui ainda não possui dívidas, mas anda perto da inadimplência, ou tem apenas uma dívida com um único fornecedor, é preciso investir na prevenção e na conscientização.
O devedor que deve, mas possui capacidade e programação financeira para pagar não se enquadra como superendividado; este é considerado aquele que deve a mais de um credor, e que não tem como solver suas dívidas.
4. SOLUÇÕES:
A) PROGRAMAÇÃO FINANCEIRA - É preciso organizar cursos e oficinas de orçamento doméstico para ensinar aos consumidores a programar suas compras e evitar o superendividamento. O superendividamento deve ser tratado prioritariamente na esfera preventiva.
B) MEDIAÇÃO – Os líderes comunitários podem promover audiências para tentativa de mediação de conflitos financeiros, estimulando a conciliação e a quitação de dívidas por permutas dentro da comunidade. O tratamento do superendividamento reclame uma visão global das dívidas, devendo nestas audiências serem convocados além do devedor todos os credores.
C) PALESTRAS E OFICINAS – É possível organização de palestras multidisciplinares com advogados, psicólogos, economistas e assistentes sociais para alertar sobre os perigos do consumismo (principalmente para os jovens) e para importância da prevenção do superendividamento. Estas palestras podem ser ministradas para associações comunitárias, para pais e mestres em escolas, ou diretamente ao público alvo.




DOCUMENTÁRIO INTERESSANTE

Assistam o documentário "Criança, a alma do negócio" sobre publicidade abusiva direcionada às crianças e jovens. Documentário sério e produzido com dados reais. Baixe gratuitamente no youtube.




APLICAÇÃO DO CDC - CONTRATOS ADM

É possivel aplicação do CDC para contratos administrativos, em caso de extrema vulnerabilidade da administração pública. Ver em: RMS 31.073-TO, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 26/8/2010.




A MULHER E A SOCIEDADE DE CONSUMO

Há muito é sabido que as necessidades humanas são finitas, mas os desejos infinitos; a necessidade é saciada com a apropriação ou consumo de algo premente e indispensável à vida humana. È mister ponderar que o indivíduo já nasce com elas, e saciá-las consiste no que há de mais intrínseco e primitivo no ser humano. Não se pode viver sem saciar a fome, o sono, a sede, etc. Como o homem é um ser social, agrega ainda necessidades outras como moradia, transporte, vestuário, etc. Já os desejos são criados e incutidos neste ser social; é algo humanamente dispensável, mas que na contemporaneidade, ganha proporções assustadoras, pois somos, cada dia mais, forçados pelos grandes instrumentos de manipulação de massas a confundí-los com necessidades. Enquanto a necessidade morre com a aquisição do objeto, a satisfação de um desejo, significa apenas o início de outro.

Desta forma, na atual sociedade capitalista e massificada, onde se produz muito para que consumo ocorra em igual escala, buscamos cada dia mais a satisfação de desejos, sem perceber que tal movimento conduz à uma escalada infinita. Um desejo satisfeito, faz nascer outro, outro e outro.... Consumir devia significar preencher necessidades, e não satisfazer desejos. Nada contra ter um ou outro desejo, pequenos deleites; mas viver para satisfazer todos os desejos, sem escaloná-los em termos de prioridades (e de valores econômicos), é deveras perigoso. Vivemos na era do consumismo, ou seja, consumir por consumir, por prazer, status, por vaidade, por ansiedade, por recompensa. Compramos a idéia que consumir é sinônimo de felicidade.

Todo esse processo frenético de viver para consumir tem um preço, que no nosso sistema capitalista, todo indivíduo tem que pagar - o consumidor acaba por gasta muito mais do que pode a sua (muitas vezes frágil) capacidade financeira, embrenhando-se em um terreno altamente perigoso. Com dívidas cada dia maiores e nome inscrito nos cadastros de maus pagadores, o consumidor perde, paulatinamente, a capacidade de sair deste estado de inadimplência. Instala-se um ciclo vicioso – as dívidas impedem a concessão de novos créditos para pagamento das antigas dívidas, surgindo assim, um enorme problema - o acúmulo destas e o aparecimento de outras. O resultado deste processo, cria uma figura bizarra - um consumidor totalmente endividado, sem nenhum poder de compra ( inclusive para satisfação de suas necessidades básicas), portador de dívidas enormes e de angústias, ainda maiores.

Nos dias atuais, vê-se consolidado o fenômeno do superendividamento – pessoas que gastam muito mais que suas receitas, na busca incessante de satisfazer desejos, com a ilusão de que, com isto, conseguirão suprir seus vazios existenciais, ascender socialmente ou serem reconhecidos como cidadãos. No pensamento de uma grande massa manipulada, consumir é a única saída; daí nasce o chamado “consumismo”. Consumismo significa o consumir por consumir, consumir para satisfazer todos os desejos ( como se isso fosse possível...). Sem sombra de dúvida, o consumismo é um importante e decisivo fator causador do fenômeno acima.

O consumismo vende a idéia de que é preciso consumir para ser feliz e ser “alguém”; todos os dias a sociedade é bombardeada com promessas de felicidade e status, através de propagandas de tênis de marca, de carros do ano, de roupas de grife. È preciso consumir para “incluir” ou ao menos, sentir-se “incluído”.O problema é que nada disso pode suprir nossas questões interiores ou mudar nossa personalidade perante o outro ou perante nós mesmos. Segundo o professor Gey Espinheira , o vazio existencial surgido pelas nossas dificuldades de relacionamentos sociais ou nossas questões psíquicas, não podem ser preenchidas com bolsas, celulares e carros. Acrescenta ainda que, a necessidade hoje não representa a falta de produtos (escassez dos recursos), mas sim, a incapacidade aquisitiva de certos consumidores.

Cada dia mais, confundi-se necessidade com desejo, e de uma forma tão perversa que, se não satisfeito tal desejo, o indivíduo é capaz de sentir o mesmo sentimento da não satisfação de uma necessidade fisiológica, o que é insuportável.

O resultado deste angustiante processo desemboca no superendividamento. É mister ainda salientar que, a maior vítima desta fenômeno, termina sendo a mulher. Primeiro, por ser mais suscetível ao consumismo, uma vez que é fortemente pressionada pela sociedade a ser mãe, mulher, profissional e amante, além do “dever” de estar sempre bela. Segundo, em função do perfil de consumo da mulher; enquanto o homem gasta muito consigo, a mulher ainda faz dívidas pensando na família.

Neste contexto, urge a construção de uma política pública de defesa e proteção para a mulher consumidora, visando evitar o superendividamento desta e da sua família.




CONTRATOS DE CONSUMO


Sumário : Introdução.1. Código de defesa do consumidor. 2. Relação de consumo. 3. Princípios gerais.4. Princípios específicos dos contratos de consumo. 5. Institutos contratuais peculiares. 6. Conclusão. Bibliografia


Introdução

Na atual sociedade contemporânea, onde as relações jurídicas contratuais privadas são cada vez mais céleres, impessoais e derivadas da produção em série, o estudo do contrato de consumo adquire suma relevância. É mister a compreensão de que forma os pactos são celebrados e executados, notadamente na seara consumerista, que possui princípios e regras jurídicas peculiares, a exemplo do direito de arrependimento, do princípio da conservação dos contratos, etc. A análise deste microssistema jurídico pertencente ao direito civil (Código Civil possui aplicação subsidiária), é indispensável para a interpretação e realização dos contratos de consumo em consonância com os princípios constitucionais de proteção ao consumidor e incentivo ao desenvolvimento da ordem econômica.


1. Código de defesa do consumidor :


A Lei 8078/90, popularmente conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC) é uma lei fudamentalmente principiológica, visto que construída em torno de princípios que norteiam e impregnam todos os artigos do citado diploma legal. Editada com o fulcro de equilibrar as relações jurídicas travadas entre consumidores e fornecedores tem como ponto principal a proteção da parte mais fraca da relação – o consumidor.

O CDC abriga as relações de consumo, criando um microssistema próprio para resolução de conflitos desta natureza. A qualidade de microssistema é atribuída pela multidisciplinariedade que abrange as normas consumeristas, uma vez que, para proteger o vulnerável, o CDC busca inspiração nas normas penais (crimes de consumo previstos nos artigos 61 a 80), nas normas administrativas (infrações administrativas constantes nos artigos 55 a 60), além das nomas civis imiscuídas nos demais artigos.


È mister colocar ainda que o consumidor, por todos os instrumentos postos a sua disposição encontrados no código (a exemplo da possibilidade de inversão do ônus probatório, da responsabilidade objetiva, etc), já possui a devida posição de destaque na relação. Não se pode esquecer a relação jurídica em questão, nem o bem que o sistema quer preservar – o bom funcionamento do mercado de consumo. Não se pode tomar o continente pelo conteúdo.

Na sua apresentação, o CDC possui uma parte material e outra processual. Na primeira, parte prevê normas substantivas que asseguram direitos e deveres das partes da relação jurídica. Esta parte material contempla os direitos básicos do consumidor, a responsabilidade do fornecedor e regras para as práticas comerciais e contratuais, além de sanções administrativas. Na segunda parte, o código dispõe sobre a tutela coletiva dos direitos fornecendo uma séria de regras processuais para efetivação dos mesmos.


2. Relação de consumo:


Identificar a natureza jurídica da relação de consumo não constitui tarefa tormentosa. Pode-se dizer que, é uma relação jurídica, onde fornecedores colocam no mercado de consumo produtos e serviços a serem adquiridos ou utilizados por consumidores.

No tocante à natureza jurídica da grande maioria dos fornecedores, facilmente percebemos estar diante de uma pessoa jurídica (o que não impede também de haver fornecedor pessoa física, a exemplo dos profissionais liberais), ou seja, uma união de pessoas físicas que formam um todo independente destas e com patrimônio, direitos e obrigações próprias.

Porém, quando a tarefa recai sobre a definição da natureza jurídica dos consumidores, a questão se complica. A despeito de serem pessoas físicas na sua maioria, a estas adere uma qualificação especial (a de consumidor), que as faz diferente das demais. Consumidor, portanto, não existe; é um conceito. Contudo, o conceito de consumidor seria uma ficção jurídica que fornece aos mesmos uma personalidade jurídica abstrata, vez que, a pessoa física consumidor não existe concretamente. Tal assertiva torna-se ainda mais correta quando examinamos os conceitos de “consumidores equiparados” presentes nos artigos 2, parágrafo único, 17 e 29 do CDC.

Estes “consumidores”, a despeito de também não existirem no plano físico, possuem natureza de presunção legal – a lei não os define, mas estabelece uma presunção de que ocorrendo uma das situações previstas, os direitos daqueles envolvidos estariam salvaguardados. Como o espírito da lei é a proteção do vulnerável, algumas vezes, a figura deste não se identifica diretamente com o consumidor destinatário final do caput do art. 2º; contudo, o legislador por identificar naquele sujeito a nota de vulnerabilidade e a conseqüente necessidade de proteção, dá ao mesmo uma qualidade que não lhe é própria – a de consumidor, através da equiparação.

Prevê o aludido diploma legal , em seu artigo 2º parágrafo único, a possibilidade de tutela de direitos de consumidores indeterminados, o que consideramos uma abrangência muito ampla e de pouca segurança jurídica quanto aos seus limites.

A questão se mostra ainda mais confusa, quando o CDC tutela direitos de uma coletividade de consumidores, quando em verdade o próprio conceito básico de consumidor trazido pelo artigo 2º, remete a um grupo ou coletividade de pessoas – dentre todas as pessoas existentes protege apenas aquele grupo que possui características de consumidor, sendo a principal delas a noção de destinatário final.

Em que pese a polêmica no tocante a natureza jurídica, é possível, didaticamente, conceituar consumidor com base no caput do artigo 2º - consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza um produto ou serviço na qualidade de destinatário final. Com isto se quer dizer que toda pessoa física ou individual, ou mesmo a pessoa jurídica, desde que posta na condição de destinatária final, pode ser considerada consumidora.

A expressão destinatário final serve para indicar aquele que figura no fim da cadeia produtiva, ou seja, aquele que cria a demanda a partir de suas necessidades e desejos e para quem a produção é voltada, utilizando o bem para consumo, e não para insumo (agrega o bem à sua atividade produtiva). Como a maioria da doutrina, adota-se neste particular, a corrente minimalista por considerar imprescindível a destinação para consumo do bem ou serviço no tocante à qualificação da relação de consumo. Para os maximalistas, contudo, a simples retirada do produto do mercado, por quem quer que seja, e sem importar a destinação do mesmo, já autorizaria a qualificação do consumidor.

Mais adiante, o citado código eleva à categoria de consumidores, as pessoas vítimas de acidentes de consumo (art.17) e as pessoas vítimas de práticas comerciais e contratuais abusivas (art. 29).

No primeiro caso, o legislador equipara a consumidor todas as vítimas dos acidentes de consumo decorrentes de fato do produto (defeito que afeta a saúde, vida e segurança do consumidor). Aqui, a despeito de não haver relação jurídica com este terceiro, o fornecedor é obrigado a ressarcí-lo dos prejuízos sofridos como se o consumidor destinatário final fosse. Isto porque, além da proteção a um vulnerável, o CDC visa indiretamente, penalizar o fornecedor pelo descumprimento de uma das suas obrigações básicas – colocar no mercado de consumo apenas produtos seguros e não causadores de danos.
No segundo caso, a proteção se estende a todos aqueles que simplesmente foram expostos a qualquer prática vedada pelo CDC, conferindo aos mesmos, legitimação para contra estas se insurgir. Note-se que, aquele que simplesmente foi exposto, mas não sofreu qualquer dano, pode pleitear uma punição ao fornecedor (a exemplo de uma multa administrativa), mas só é possível a indenização de danos, quando estes realmente ocorrerem.

Finalmente, ainda como elementos de uma relação de consumo, estão o produto e o serviço. Produto é todo bem material ou imaterial posto no mercado de consumo; serviço é toda força/energia produtiva oferecida no mercado de consumo mediante remuneração.

3. Princípios basilares :

Segundo Ronald Dworkin (2002), princípio seria um padrão que deve ser observado, não pela promoção ou seguridade de uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas por ser uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão de moralidade. Desta forma conclui-se que um princípio é uma diretriz que se espraia pelo sistema, orientando e conduzindo a elaboração das regras positivas e as soluções para os conflitos.

Note-se que, os princípios possuem alta carga valorativa, devendo ser aplicados a partir da ponderação dos interesses que são por eles protegidos, no sentido de que devem ser sopesados, evitando a aplicação excludente, permitindo, no máximo, a prevalência momentânea de um deles em caso de conflito.

O microssistema legal criado pelo CDC consiste na consagração de seus princípios basilares que se irradiam influenciando, não só a produção das regras, como condicionam sua interpretação.

Neste sentido, aduzem Bonattto e Moraes (2000) :


“ De tudo isto, fica evidente que as lei jurídicas, como resultado de uma manifestação cultural eivada de valores, os quais emergem sobre a forma de princípios e regras, e impõem uma ação tendente a escaloná-los axiologicamente, de acordo com uma ordem de importância e conveniência, tendo em vista uma conformação finalística.”

A partir do resgate da importância dos princípios, pode-se identificar como basilares do sistema consumerista os seguintes :


a)Boa-fé objetiva – Princípio que pode ser traduzido no dever recíproco das partes de não tentarem se lesar ou obter vantagem indevida. Corresponde ao comportamento leal, probo e transparente. As regras e premissas contratuais e extracontratuais, bem como, a oferta e as reclamações devem sempre estar pautadas nesta cláusula geral de boa-fé.

Sucintamente, poderíamos falar que a boa-fé nos consumidores deve corresponder ao binômio honestidade e fidelidade para com seus fornecedores; em contrapartida, estes fornecedores, devem sempre ter em vista o respeito e a qualidade dos seus produtos postos no mercado de consumo.
O dever de boa-fé funciona ainda fonte autônoma de direitos e obrigações na relação obrigacional, incluindo os deveres de cuidado, de transparência, de colaboração e cooperação entre as partes.

Estes deveres na seara contratual, traduzem-se no que Cláudia Lima Marques (2004) , chama de “dever de cooperação” - atuação da boa-fé objetiva como uma atuação “ refletida”. Tal atuação do contratante deve refletir no outro contratante visto como parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso ou obstrução para atingir o bom fim das obrigações : o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.

Esta dialética pautada no respeito entre as partes da relação de consumo é imprescindível, afinal ambas são lados opostos da mesma moeda, e não inimigas capitais. Apenas com a conexão consumidor/fornecedor, é possível falar mercado de consumo. Neste diapasão, bem coloca-se um antigo provérbio chinês : “ É o sino que toca? É o badalo que toca? Ou é a união dos dois que faz tocar?”

b)Vulnerabilidade – É o estado que se encontram todos aqueles que vivem numa sociedade massificada. Implica na posição de desvantagem de alguém em face a outro alguém, sendo o primeiro suscetível à pressões e influências, contra as quais, algumas vezes, não pode lutar. Na expressão do professor Washington Trindade, vivemos buscando a satisfação das “necessidades socialmente sentidas”, mas no mundo contemporâneo e na sociedade capitalista, é mister atentar que todos somos vulneráveis à “fabricação destas necessidades”. Vale dizer que, muitos de nós já não podem discernir se buscam satisfazer necessidades (algo real e premente à vida humana) ou desejos (algo dispensável realmente mas indispensável no inconsciente coletivo pelo trabalho criativo da mídia na fabricação destas novas “necessidades”).

Para Cláudia Lima Marques (2003) , significa um estado inerente de risco da pessoa ou um sinal de confrontação excessiva de interesses, identificado no mercado, que fragiliza e enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação.


c) Vinculação da oferta – Princípio que obriga o fornecedor (já na fase pré-contratual) ao cumprimento do ofertado no mercado, respeitando-se as formas e condições da oferta. Seu descumprimento pode gerar inclusive execução específica para cumprimento de obrigação de fazer. Além disto, deve a oferta ser clara e precisa em todos os seus termos, especialmente no tocante a definição da coisa e do preço. Tamanha é a importância deste princípio, que toda a oferta é considerada cláusula pré-escrita do futuro contrato que por conta dela venha a ser celebrado. Corresponde à positivação da teoria da confiança.

Inspiradas nos princípios, tem-se ainda, algumas regras norteadoras do microssistema de consumo, quais sejam;

* Responsabilidade objetiva e solidária dos fornecedores – Reza o artigo 7 do CDC, que a responsabilidade dos fornecedores de produtos ou serviços, se dá de forma solidária. Isto quer dizer que respondem independente de culpa, como regra geral, todos os fornecedores; excetuando-se os profissionais liberais que respondem de forma subjetiva (exige prova da culpa).
Respondem ainda de forma solidária (art. 12 e 18 do CDC), todos os fornecedores que atuam na cadeia produtiva até o consumidor. Mister salientar, que tal regra também comporta exceções cuja sutileza se depreende das palavras do texto legal. Quando o código quer definir a regra da solidariedade, o faz nomeando todos os inclusos nesta regra de “fornecedores”, a exemplo do art. 18; quando quer quebrar esta cadeia de solidariedade, nomeia expressamente quais fornecedores da cadeia serão responsabilizados, como “ fabricante”, “construtor” , “importador” e demais termos que aparecem no art. 12.

* Inversão do ônus da prova – É direito básico do consumidor previsto no art. 6 do CDC, a possibilidade de inversão do ônus da prova. Tal regra surge para tentar espancar o desequilíbrio processual entre duas forças de grandezas tão diferentes – consumidor e fornecedor; busca-se a consagração da isonomia procurando tratar os desiguais de forma desigual. A questão que se coloca é que para ter direito à esta inversão o consumidor deve comprovar nos autos os requisitos da medida – hipossuficiência ou verossimilhança da alegação.

Hipossuficiência corresponde a condição processual daquela parte que não tem condições técnicas, econômicas ou jurídicas de fazer prova satisfatória dos seus alegados direitos. Quanto a verossimilhança, esta é o convencimento da verdade das alegações gerador de uma “quase certeza”; é muito mais que a simples plausibilidade da alegação. Deve por conta da experiência prática e do cotidiano do juiz, gerar um convencimento íntimo quanto a veracidade da alegação. É preciso ter em mente que a inversão ope judicis não é arbítrio do juiz, só podendo ser admitida quando a pedido das partes, restando comprovados os requisitos acima, o magistrado expressamente declara invertido o ônus da prova, dando as partes a oportunidade de manifestação em respeito ao real sentido do princípio constitucional do contraditório. A única hipótese de inversão automática despicienda de convencimento judicial (inversão ope legis), é a contida no artigo 38 do CDC; trata de inversão do ônus no tocante a publicidade e a oferta.


4. Princípios específicos dos contratos de consumo :


A despeito da aplicação subsidiária do Código Civil às relações de consumo, naquilo que não lhe for específico e não regulado pelo CDC, existem princípios peculiares da seara consumerista. Na aplicação destes, contudo, deve o intérprete respeitar a regra principal para aplicação de princípios – a ponderação de interesses. Vale dizer que em termos de princípios, não vale a regra do “tudo ou nada”. Os princípios não se sobrepõem totalmente uns aos outros; devem antes ser harmonizados de acordo com as diretrizes constitucionais (no caso a proteção consumerista e a proteção à ordem econômica), e em caso de conflito, devendo prevalecer o interesse mais significante a ser protegido de acordo com o caso concreto. O operador do direito deve tomar muito cuidado neste tocante para que em nome da eficácia de um princípio, não se anule ou viole outro, uma vez que o sistema jurídico prega a unidade e a harmonização das normas.

Resumidamente os contratos de consumo devem ser entendidos consoante os seguintes princípios :

a)Conservação dos contratos – Princípio mitigador da pacta sunt servanda, no tocante a concessão da possibilidade de modificação e alteração do quanto contratado, havendo desequilíbrio entre as partes na vigência do contrato. Logicamente que este desequilíbrio não se configura em qualquer fato, mas sim fato impessoal gerador de grave desequilíbrio econômico ou lesão ocasionada pelo não correspondência entre prestação e contraprestação.

Os contratos de consumo possuem tamanha importância no ordenamento jurídico, que em havendo uma lesão ou ameaça de lesão a uma das partes, não vigora a regra da rescisão com o pagamento das eventuais perdas e danos, que vigorou no antigo Estado Liberal sob a égide do código oitocentista. Na contemporaneidade do Estado Social, as avenças de consumo, que pressupõem satisfação de necessidades humanas básicas, a regra é a alteração ou modificação das cláusulas, para tentar resgatar a essência do quanto pactuado, para que a vida útil deste contrato seja prolongada no tempo. A despeito da presença de vários dispositivos espalhados pelo CDC, tais princípios mostram-se presentes nas regras contidas nos artigos 6 e 51.Deve contudo o intérprete de tal princípio verificar sua real adequação ao caso concreto e sua harmonização com os interesses do fornecedor e do mercado de consumo.


b) Interpretação pró-consumidor – Princípio que serve de vetor interpretativo para todos os contratos de consumo, consagrado nos artigos 46 e 47 do CDC, reza que a partir da interpretação das cláusulas de um contrato, em havendo interpretações divergentes, razoáveis e compatíveis com o sistema consumerista, deve prevalecer aquela que seja mais favorável ao consumidor.


5. Institutos contratuais peculiares :


Decorrentes dos princípios norteadores de todo o microssistema de consumo, afloram por fim, alguns institutos peculiares seara contratual. Vejamos a seguir:


*Recall – Vocábulo derivado da palavra inglesa call (chamar), vem significando o re-chamado ou chamar de volta. Consagrado no artigo 10, parágrafos 1º e 2º do CDC, toda vez que um fornecedor após a disponibilização no mercado, descobre vício em seu produto/serviço, tem a obrigação de convocar de volta os consumidores que adquiriram ou utilizaram tais produtos/serviços, para o devido ajuste ou troca. Não pode contudo, na tentativa de esquivar-se da responsabilidade, o fornecedor alegar desconhecimento do vício, não só em virtude da regra de responsabilidade objetiva, como pela presunção doutrinária que os riscos do negócio englobam o conhecimento deste, ou seja, se o fornecedor não sabia do vício, em tese, pelo conhecimento do seus negócio e do funcionamento deste, deveria saber. Saliente-se que a medida não constitui faculdade do fornecedor, e sim, dever legal, impondo o sistema consumerista a forma da sua execução (utilização dos mesmos meios usadas para a oferta e gastos por conta do fornecedor), e penalidades para o caso de descumprimento.

*Direito de arrependimento – Direito consagrado pelo artigo 49 do CDC, reza que mesmo após a celebração de um contrato de consumo realizado fora do estabelecimento comercial, no prazo de sete dias, pode o consumidor desistir do aludido contrato. O prazo começa a correr da data do recebimento se este não for concomitante com a assinatura. Pela expressão “fora do estabelecimento comercial”, refere-se a lei aos contratos feitos via telefone ou a domicílio. A doutrina tem ampliado este entendimento para os contratos celebrados via Internet e para aqueles contratos que a despeito de terem sido celebrados dentro da loja, por catálogo ou folheto, onde o consumidor não teve contato físico com o bem (interpretação teleológica).

Quanto ao ônus pela devolução, o CDC aduz que o consumidor tem o direito de receber de volta o valor pago e corrigido monetariamente (incluindo despesas com eventual frete). A doutrina e a jurisprudência, contudo, têm em respeito a harmonização dos princípios da proteção do consumidor e da rodem econômica, mitigado um pouco este entendimento, admitindo a possibilidade de rateamento das despesas do frete entre as partes, ou mesmo isenção ao pagamento deste por parte do fornecedor, de acordo com o caso concreto.


6. Conclusão


Por tudo que foi dito, pensa-se estar diante de uma nova realidade contratual que requer do operador do direito uma nova postura, no sentido de compreensão da dinâmica e da estruturação do sistema consumerista, para a correta interpretação dos contratos de consumo. O direito do consumidor e o crescimento da ordem econômica devem antes se harmonizar, não se enfrentar numa inútil e perigosa queda de braço, afinal consumidor e fornecedor são os dois lados de uma mesmo moeda – se completam e interagem.




REFERÊNCIAS :


BONATTO, Cláudio e MORAES, Paulo Valério. Questões Controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo : Livraria do Advogado, 2000.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. São Paulo : Marins Fontes, 2002.

GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. São Paulo : Saraiva, 2004.

LARENZ, Karl. Base del negocio juridico y cumplimiento de los contratos. Madri : Editorial revista de derecho privado, 1956.

LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípios contratuais. In: Teoria do contrato e o novo código civil. Recife : Nossa Livraria, 2003.

_____________________ . Deveres gerais de conduta nas obrigações civis .In : Questões controvertidas no direito das obrigações e dos contratos. São Paulo : Método, 2005.

MARIMPIETRI, Flavia. Direito material do consumidor. Salvador : Endoquality, 2001.

____________________ . Pressupostos da revisão dos contratos de consumo. Salvador: EGBa, 2008.

MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo : RT, 2003.

__________ . Contratos no código de defesa do consumidor. Biblioteca de direito do consumidor – volume 1. São Paulo : RT, 2004.

___________. Diálogo entre o código de defesa do consumidor e o novo código civil :d o “diálogo das fontes” no combate às cláusulas abusivas. In : Revista de direito do consumidor, nº 45. São Paulo : RT, 2003.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo : RT, 2000.

MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2008.

SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório – Tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro : Renovar, 2005.



ARTIGO DIREITO DO CONSUMIDOR E DIREITO DO TRABALHO


DIREITO DO CONSUMIDOR E DIREITO DO TRABALHO
AXIOLOGIA E PRINCIPIOLOGIA COMUNS


Sumário : 1. Introdução; 2. Histórico; 3. Principiologia;. 4. Princípios comuns; 5. Conclusão; Bibliografia .


1. Introdução

Em função das diversas transformações sociais e econômicas ocorridas a partir da revolução industrial, surgiram dentro do campo do direito civil clássico, dois importantes microssistemas – o direito do trabalho e o direito do consumidor. Apesar de disciplinarem relações jurídicas diversas, ambos diplomas legais são classificados como protetivos e principiológicos, apresentando semelhanças quanto a sua origem e alguns dos seus princípios basilares.

2. Histórico

A revolução industrial do século XVIII, trouxe consigo , dentre outras profundas mudanças na economia e na política, o incremento do capital , o aumento da produção e do consumo .As relações jurídicas, tanto negociais como trabalhistas, antes travadas pessoalmente e com as peculiaridades dos sujeitos, passam a ser impessoais. Os contratos ( de trabalho e de consumo) passam a refletir a automatização das relações, distanciando cada vez mais as partes contratantes . Neste cenário, reinava a pouca intervenção estatal em respeito aos ideais burgueses da autonomia privada e da auto-regulação do mercado. Este quadro traduz, sucintamente, o que se chamou de liberalismo econômico do século XIX, e que serviu de inspiração para o Código Civil Pátrio de 1916. Reinavam de forma absoluta a vontade privada , o total individualismo , o entendimento absoluto do contrato como lei entre as partes e a obrigação do cumprimento irrestrito do mesmo.

O final do século XIX, trouxe a constatação que tal modelo gerou alguns abusos nas relações negociais, onde os detentores do capital, em nome das diretrizes liberais oitocentistas, alteravam sobremaneira a divisão do poder e da riqueza, em detrimento daqueles que não detinham o capital. Segundo Carvalho Jr. (2005, pág. 23), a excessiva liberdade dos agentes econômicos gerou superprodução e crises, o que foi agravado pela inexistência de planejamento e regulação da atividade econômica. Começava a surgir um descompasso entre a realidade social e os valores jurispositivados na legislação. É justamente em virtude deste descompasso, que surgem dentro do direito civil, os microssistemas e suas legislações específicas, contempladoras de suas peculiaridades – direito do menor, locação, direito do consumidor, etc. Se faz premente a necessidade, não de uma lei, mas sim, de todo um sistema protetivo à parte mais frágil da relação, no intuito de reequilibrar a anterior divisão do poder e seus reflexos econômicos.

Em verdade, se busca evitar a autofagia do mercado, preservando o hipossuficiente, para a perpetuação deste mercado, vez que , se o poderio econômico aniquilasse totalmente o poder de compra dos que consomem, os produtores não teriam a quem vender. Não se pode perder de vista que consumidores e fornecedores são dois lados da mesma moeda – mercado de consumo; o acerto destas forças requeriam regras e princípios próprios, e o regramento dos direitos e obrigações das partes desta relação jurídica peculiar – a relação de consumo.

Note-se que, em verdade o direito do consumidor foi inspirado nas lutas promovidas pelo movimento sindical, que mais tarde evoluiria para o direito do trabalho. Essa inspiração deu-se, principalmente, em virtude das semelhanças axiológicas entre ambos os ramos, sendo a principal delas, proteção da parte mais fraca (vulnerável) com o fito de promover a igualdade real nas relações jurídicas de consumo e de trabalho. Segundo Brito Filomeno (1999, pág.55), não foi por mero caso que o movimento consumeirista nasceu a partir da segunda metade do século XIX, quando nos Estados Unidos, o movimento sindical lutava por melhores condições de trabalho e poder aquisitivo dos trabalhadores.

O direito trabalhista surgiu a partir da união de forças dos trabalhadores (movimento sindical), na busca da transformação das relações de trabalho e seu tratamento jurídico. A aglutinação dos trabalhadores que rendeu forças ao movimento sindical, deu-se basicamente, em função da constatação de dois pontos cruciais. Segundo Rodrigues Pinto (2003, págs. 29 e 30), estes fatores seriam a percepção do mal comum que atingia a todos os operários e o fato de que muitos eram subjugados pelos poucos detentores do capital. A estruturação do proletariado como classe gerou a conscientização e criação de instrumentos de autodefesa coletiva.

Na linha da história, portanto, o direito do trabalho precede o do consumidor. Curiosamente, em países estrangeiros como os Estados Unidos, o direito do consumidor nasceu dentro do movimento sindical, enquanto que no Brasil, nasceu dentro do próprio Estado. No início da década de 60, surgem as primeiras entidades de proteção ao consumidor, porém estas não tinham grande expressão no cenário social. A primeira entidade com repercussão social foi o PROCON do Estado de São Paulo, criado por lei estadual em 1978; a partir desta iniciativa governamental, outros estados copiaram o modelo paulista, a exemplo da Bahia, que implantou o seu PROCON em 1987.O governo cria nesta época também o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, trazendo a baila definitivamente a importância social do tema, o que propiciaria o contexto, para o posterior positivação destes valores, por meio do advento do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1990.

Podemos afirmar que ambos os diplomas legais além de protetivos por tentarem igualar os desiguais, tentando promover assim um equilíbrio de forças naturalmente desiguais, são leis principiológicas – baseiam-se em princípios peculiares que, irradiam para todo o microssitema e condicionam a interpretação de todos os seus artigos.

É mister salientar que, o direito do consumidor e do trabalho, a despeito de sofrerem enorme influência do direito civil, não podem ser encarados como meros apêndices do civilismo . Insista-se que, em verdade, tais ramos do direito, traduzem-se na noção de microssistemas jurídicos dentro do direito privado. Para compreensão da real abrangência do que queremos colocar, podemos afirmar que as esferas consumierista e trabalhista, enquanto sistemas autônomos (e não apenas como acessório do direito civil), consistem em ordenamentos autônomos, possuidores de regras e princípios próprios, onde não devem existir lacunas na solução do caso concreto. Vale dizer que,nenhuma solução para conflitos deve ser buscada, primeiramente, fora deste sistema, vez que, seus modelos principiológicos e portadores de cláusulas gerais, o tornam completo e capaz de solucionar, aprioristicamente, o caso concreto(apesar da aplicação subsidiária do regramento do direito civil).

A visão principiológica é de suma importância para compreensão do sistema jurídico, em especial dos microssistemas, aduzindo Carvalho Jr. (2005, pág. 19), que o movimento neoconstitucionalista, propõe uma visão pós-positivista e principiológica do direito, mormente em face do postulado da supremacia constitucional, na perspectiva de que o direito é acima de tudo um sistema aberto de valores, a exigir a imprescindível ponderação de interesses quando estes ingressam em rota de colisão. Neste diapasão, pode-se concluir que, tanto os conflitos consumeiristas como os trabalhistas, em virtude da principiologia inerente aos seus regramentos, devem ser resolvidos sempre à luz das regras e princípios insculpidos no CDC e na CLT, buscando neles a solução mais adequada ao caso concreto.


3. Principiologia

Segundo Ronald Dworkin (2002, pág. 32 a 36), princípio seria “ um padrão que deve ser observado, não por que vá promover ou assegurara uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão de moralidade”. Já as regras, seriam definidas como comportamentos normativos impostos e portadores de sanção para o seu descumprimento. Podemos a partir daí, concluir que um princípio é uma diretriz axiológica que se espraia pelo sistema, orientando e conduzindo a elaboração das regras positivas e as soluções para os conflitos Os princípios possuem alta carga valorativa, devendo ser aplicados a partir da ponderação dos interesses que são por eles protegidos, no sentido de que, devem ser sopesados, evitando a aplicação excludente, permitindo, no máximo, a prevalência momentânea de um deles, em caso de conflito.

Ainda segundo Ronald Dworkin (2002, pág. 39), a despeito de princípios e regras constituírem padrões sobre obrigações jurídicas, voltados para decisão de casos particulares, diferem quanto ao tipo de orientação que proporcionam. Vale dizer que, as regras são aplicadas de forma excludente, sob a fórmula do “tudo ou nada”; já os princípios, devem ser sopesados, podendo ser conciliados. Assim são os microssistemas legais criados tanto pelo CDC como pela CLT – a consagração de seus princípios basilares, os quais irradiam e influenciam, não só a produção das regras, como condicionam sua interpretação.

Neste diapasão, as searas consumeirista e trabalhista, são regidas por leis essencialmente principiológica, onde os princípios adquirem ainda maior importância, assim como sua interpretação sistemática. Aduzem Bonattto e Moraes (2000, pág. 23) que :


“ De tudo isto, fica evidente que as lei jurídicas, como resultado de uma manifestação cultural eivada de valores, os quais emergem sobre a forma de princípios e regras, e impõem uma ação tendente a escaloná-los axiologicamente, de acordo com uma ordem de importância e conveniência, tendo em vista uma conformação finalística.”


4. Princípios comuns


A partir da concepção exposta no ítem anterior, podemos identificar, sumariamente, como princípios basilares comuns aos citados microssistemas, os seguintes :


a)Boa-fé – Um dos princípios mais importantes do sistema jurídico, consagrado constitucionalmente, positivado no direito consumeirista, antes mesmo de o ser no Código Civil. Pode ser traduzido no dever recíproco das partes, de não tentarem lesar-se mutuamente ou obterem vantagem indevida. As regras e premissas contratuais e extracontratuais, bem como, aquelas que regem as relações fornecedor-consumidor e empregador-empregado, devem sempre estar pautadas nesta cláusula geral de boa-fé, de forma que esta constitui-se verdadeiro dever acessório das partes. Sucintamente, poderíamos falar que a boa-fé nos consumidores deve corresponder ao binômio - honestidade e fidelidade, para com seus fornecedores; em contrapartida, estes fornecedores, devem sempre ter em vista o respeito e a qualidade dos seus produtos postos no mercado de consumo.Nas relações trabalhistas, pode-se falar em boa-fé, por exemplo, quando o empregador não explora os seus empregados em virtude da sua superioridade econômica e pauta as relações trabalhistas no princípio da dignidade da pessoa humana; quanto aos empregados, quando os mesmos respeitam o dever de lealdade e de cooperação para o bem comum. Segundo Sussekind (2003, pág.146), embora figure como princípio geral do direito, a boa-fé se aplica ao direito do trabalho, em virtude do intenso e permanente relacionamento entre trabalhador e empregador, assim como entre as partes envolvidas na negociação coletiva.

Esta dialética pautada no respeito recíproco entre as partes é imprescindível, afinal ambas, são lados opostos da mesma moeda, e não, inimigas capitais – capital/trabalho e produção/consumo. Apenas com a conexão e sintonia entre as partes, é possível falar-se em harmonia das relações (tanto de consumo como de trabalho). Para ilustrar o quanto dissemos, trazemos um antigo provérbio chinês : “ É o sino que toca? É o badalo que toca? Ou é a união dos dois que faz tocar?”

b)Vulnerabilidade – É o estado que se encontram todos aqueles que vivem numa sociedade massificada, sujeitos as imposições dos detentores do capital. Implica na posição de desvantagem de alguém, em face a outro alguém, sendo o primeiro, suscetível à pressões e influências. Na expressão do professor Washington Trindade, vivemos buscando a satisfação das “necessidades socialmente sentidas”, o que nos faz muitas vezes, submissos à situações com as quais, em tese, não concordamos, mas não há outra opção senão, o julgo ao mais forte. Como nenhum elo pode ser mais forte que a corrente, a vulnerabilidade é o traço distintivo caracterizador de consumidores e empregados, tentando as legislações especiais, fornecerem instrumentos para redução desta vulnerabilidade. Note-se que, na seara consumeirista, vulnerabilidade não se confunde com hipossufisciência. A primeira é geral, ampla, e característica de todos aqueles que face à relação jurídica material, encontram-se em desvantagem; já a segunda, é restrita à aqueles que possuem hipo(pouca)- suficiência para prova judicial de seus direitos, vale dizer, não possuem condições técnicas, jurídicas ou econômicas para fazerem prova adequada e conclusiva a respeito dos seus direitos. Assim, Antônio Benjamim apud Arruda Alvim ( ?, pág. 45) aduz ensinamento sobre a seara consumeirista , plenamente aplicável à seara trabalhista, no sentido de que:

A vulnerabilidade é um traço universal de todos os consumidores, ricos ou pobres, educadores ou ignorantes, crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é marca pessoal, limitando-se a alguns – até mesmo a uma coletividade – mas nunca a todos os consumidores.

No direito trabalhista, a vulnerabilidade do trabalhador em face ao poderio econômico do empregado, também é a preocupação do Estado, ao insculpir no ordenamento o princípio da proteção do trabalhador. É denominado de princípio da proteção do hipossuficiente econômico, e consistiria na intervenção Estatal nas relações de trabalho, para impor limites à autonomia da vontade e para proteção do economicamente mais vulnerável.

O objetivo comum a ambos os ramos do direito (consumeirista e trabalhista), é a busca da igualdade substancial de partes desiguais. Nas palavras de Sussekind (2003, pág.144), o direito do trabalho é um direito especial diferente do direito comum, especialmente porque, pressupõe uma situação de desigualdade que ele tende a corrigir com outras desigualdades.

c)Responsabilidade solidária dos fornecedores – Reza o artigo 7º do CDC, que a responsabilidade dos fornecedores de produtos ou serviços, se dá de forma solidária. Isto quer dizer que respondem, como regra geral, todos os fornecedores, ou seja, respondem de forma solidária (art. 12 e 18 do CDC), todos os fornecedores que atuam na cadeia produtiva até o consumidor.Mister salientar, que tal regra também comporta exceções cuja sutileza se depreende das palavras do texto legal. Quando o código quer definir a regra da solidariedade, o faz nomeando todos os inclusos nesta regra de “fornecedores”, a exemplo do art. 18; quando quer quebra esta cadeia de solidariedade, nomeia expressamente quais fornecedores da cadeia serão responsabilizados, como “ fabricante”, “construtor” , “importador” e demais termos que aparecem no art. 12.

Também na esfera trabalhistas,é visível a regra da solidariedade, pois todos aqueles que integraram a cadeia produtiva na qualidade de empregadores, podem ser assim considerados, desde que seja caracterizado o vínculo trabalhista, formado basicamente pela subordinação, habitualidade e remuneração. Na seara trabalhista este princípio também é conhecido como princípio da solidariedade de empresas, o qual de acordo com Rodrigues Pinto (2003, pág. 160), teve sua origem na formação de grupos de empresas com interesses econômicos interligados, e tem como efeito, a responsabilidade solidária de todas as empresas do grupo, desde que acionadas na fase processual de conhecimento.

d)Inversão do ônus da prova – é direito do consumidor previsto no art. 6º do CDC, a inversão do ônus da prova. Tal regra surge para tentar espancar o desequilíbrio entre duas forças de grandezas tão diferentes – consumidor e fornecedor; busca-se a consagração da isonomia procurando tratar os desiguais de forma desigual. A questão que se coloca é que para ter direito à esta inversão o consumidor deve comprovar nos autos os requisitos da medida – hipossuficiência ou verossimilhança da alegação. Entendemos por hipossuficiência, a condição processual daquela parte que não tem condições técnicas, econômicas ou jurídicas de fazer prova satisfatória dos seus alegados direitos.Quanto a verossimilhança, é o convencimento da verdade das alegações gerador de uma “quase certeza”; é muito mais que a simples plausibilidade da alegação. Deve por conta da experiência prática e do cotidiano do juiz, gerar um convencimento íntimo quanto a veracidade da alegação. É preciso ter em mente que a inversão ope judicis não é arbítrio do juiz, só podendo ser admitida quando a pedido das partes, restando comprovados os requisitos acima, o magistrado expressamente declara invertido o ônus da prova, dando as partes a oportunidade de manifestação em respeito ao real sentido do princípio constitucional do contraditório. A única hipótese de inversão automática despicienda de pronunciamento judicial (inversão ope legis), é a contida no artigo 38 do CDC; trata-se de inversão do ônus probatório no tocante a publicidade e a oferta. No direito laboral, vige o mesmo espírito, e também existe a inversão do ônus da prova; porém, esta se dá de forma automática, sempre que o empregador alegar em sua defesa, fato impeditivo, extintivo ou modificativo no tocante à relação trabalhista.

e) Princípio do in dúbio pro operário/pro consumidor – Este princípio aduz que, se da interpretação da norma legal, surge mais de uma possibilidade de aplicação para a resolução do caso concreto, deve prevalecer aquela que mais favoreça o trabalhador ou o consumidor (de acordo com a relação jurídica base).

f) Conservação dos contratos – Por sua importância social, os contratos de consumo, devem ser preservados de nulidades ou anulabilidades, pra que durem o maior tempo possível. Para que a essência da relação jurídica base de direito material seja conservada, devem as partes empreender todos os esforços para a conservação do contrato, podendo ainda o juiz, caso detecte algum vício contratual, modificar as cláusulas contratuais viciadas, para manter a essência do negócio jurídico e perpetuar a relação contratual entre as partes. No direito do trabalho, encontramos o correspondente axiológico deste princípio, no da continuidade da relação de emprego. Este está visceralmente ligado a estabilidade no emprego, e assim como na esfera consumeirista, visa a perpetuação do vínculo obrigacional bilateral entre as partes – continuidade do contrato.

5. Conclusão

Por tudo o quanto exposto, concluímos que, os microssitemas consumeirista e trabalhista, a despeito de regras próprias e peculiares, formadores de verdadeiros microuniversos jurídicos dentro do direito civil, possuem a mesma raiz axiológica, o que se traduz na sua semelhança de princípios e regras.



BIBLIOGRAFIA

ALVIN, Arruda. Código de Defesa do Consumidor comentado. São Paulo : RT, (?).

BONATTO, Cláudio e MORAES, Paulo Valério. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo : Livraria do Advogado, 2000.

CARVALHO JR., Pedro Lino. A lesão consumeirista no direito brasileiro. Rio de Janeiro : Lumem Iuris, 2005.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. São Paulo : Martins Fontes, 2002.

FILOMENO, José Geraldo Brito e outros. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor . Rio de Janeiro : Forense, 1999.

MARIMPIETRI, Flavia. Direito material do consumidor. Salvador : Endoquality, 2001.

PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito do Individual do Trabalho. São Paulo : LTr, 2003.

SUSSEKIND, Arnaldo. Instituições de Direito do Trabalho. São Paulo : LTr, 2003.




ARTIGO Contrato de Empréstimo Bancário ao Consumidor
Contrato de Empréstimo Bancário ao Consumidor



SUMÁRIO: Introdução. Contratos de empréstimo. Mútuo Feneratício. Microssistema de consumo e incidência do CDC. Disciplina jurídica do CDC. Conclusão.


INTRODUÇÃO


Na sociedade contemporânea, as relações jurídicas contratuais privadas apresentam-se cada vez mais céleres, impessoais e derivadas da produção em série; o contrato não mais é negócio jurídico amplamente discutido entre as partes e fruto da convergência igualitária das vontades. O contrato na contemporaneidade apresentam-se, normalmente, em forma de formulário padrão, onde são ofertados os mesmos produtos e serviços a qualquer um que se disponha a adquirí-los mediante pagamento; pouco importando a eventual presença de uma desigualdade de forças no vínculo contratual que se forma, em virtude de ser um dos contratantes um vulnerável.

Neste contexto, o estudo do contrato adquire suma relevância. Numa sociedade de consumo imergida num economia capitalista, é mister, em especial, o entendimento da arquitetura do contrato de mútuo feneratício quando é o mutuante um vulnerável. A compreensão da forma e características destes pactos, notadamente na seara consumerista, é imperiosa para o saudável andamento e sustentabilidade do mercado de consumo.

A análise deste tipo contratual dentro do microssistema jurídico consumerista (onde o Código Civil possui aplicação subsidiária), faze-se ainda indispensável para a harmonização dos princípios constitucionais de proteção ao consumidor e incentivo ao desenvolvimento da ordem econômica.


1.CONTRATO DE EMPRÉSTIMO

Segundo TARTUCE (2008, p.451), o contrato de empréstimo pode ser conceituado como negócio jurídico onde ocorre a entrega de coisa a alguém que compromete-se a devolver a coisa emprestada ou seu equivalente. Neste contexto, o contrato de empréstimo é gênero do qual fazem parte o mútuo e o comodato.

No presente estudo, é mister atentar para o contrato de mútuo. Este pode ser definido por ULHOA (2007, P.264) como contrato onde uma das partes (chamada de mutuante) transfere, temporariamente, a outra (mutuário) o domínio de coisa fungível. Vale salientar que, o mutuante deve ser o proprietário da coisa para poder transferir sem problemas jurídicos o domínio. Contudo, como há a transferência do domínio (posse e propriedade), o mutuário suporta o ônus e riscos do eventual perecimento ou perda da coisa. Por fim, atente-se ainda para o caráter temporal do mútuo, pois caso não se determine lapso de tempo para devolução do bem, pode ser confundido com doação.

Resumidamente, de acordo com as classificações da teoria geral dos contratos, pode-se afirmar que o mútuo é contrato temporário, real e unilateral. A doutrina moderna ainda classifica este tipo contratual quanto a obrigatoriedade de remuneração em gratuito e oneroso; é justamente este último tipo (oneroso), chamado de “mútuo feneratício”, que apresenta-se com especial relevância para esta estudo.

2. MÚTUO FENERATÍCIO

No contrato de mútuo, quando existe a obrigação de remuneração pelo empréstimo da coisa, fala-se em mútuo oneroso ou feneratício. Dada a sua disseminação na sociedade atual, onde o crédito é bem da vida de suma importância, este tipo contratual também é conhecido, popularmente, como contrato de empréstimo bancário.

Quando o contrato tiver fins econômicos e for remunerado por juros, vê-se um contrato de mútuo feneratício. Aliado a tais características, quando o mutuante é instituição financeira, surge o conhecido e supra citado, contrato de empréstimo bancário. Contudo, tal contrato pode se inserir no universo civil ou consumerista, dependendo da pessoa do mutuário. Vale dizer que, se este for um civil (pessoa física ou jurídica que não destinatário final do bem), tal contrato é regido, exclusivamente, pelas normas do Código Civil; caso o mutuário seja um consumidor (destinatário final ou equiparado), o contrato passa a ser regido prioritariamente pelas normas do Código de Defesa do Consumidor – CDC, e subsidiariamente pelo regramento do Código Civil.
Para contextualizar corretamente o contrato de empréstimo bancário como civil ou consumerista, é mister entender os campos de incidência dos diplomas legais que os regem.

3.MICROSSISTEMA DE CONSUMO E INCIDÊNCIA DO CDC

A Lei 8.078/90, popularmente conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), é uma lei fudamentalmente principiológica, visto que, construída em torno de princípios que norteiam e impregnam todos os artigos do citado diploma legal. Editada com o fulcro de equilibrar as relações jurídicas travadas entre consumidores e fornecedores tem como ponto principal a proteção da parte mais fraca da relação – o consumidor.

Para a correta aplicação deste Código, é imprescindível, a presença de uma relação de consumo, sem a qual, não pode haver incidência deste diploma legal. Neste diapasão, pode-se definir relação de consumo como relação jurídica, onde fornecedores colocam no mercado de consumo produtos e serviços a serem adquiridos ou utilizados por consumidores. Neste sentido ainda, é mister a compreensão da definição dos atores desta relação – consumidores e fornecedores.
Inicialmente, é preciso compreender a dimensão (conceitual e principiológica) do conceito de consumidor trazida pelo CDC. A despeito de serem pessoas físicas, na sua maioria, a esta condição adere uma qualificação especial (a de consumidor), que as faz diferente das demais. Consumidor, portanto, não existe; é um conceito. Contudo, o conceito de consumidor seria uma ficção jurídica que fornece aos mesmos um personalidade jurídica abstrata, vez que, a pessoa física consumidor não existe concretamente. Tal assertiva torna-se ainda mais correta quando examinamos os conceitos de “consumidores equiparados” presentes nos artigos 2, parágrafo único, 17 e 29 do CDC. Estes, a despeito de também não existirem no plano físico, possuem natureza de presunção legal – a lei não os define, mas estabelece uma presunção de que ocorrendo uma das situações previstas, os direitos daqueles envolvidos estariam salvaguardados.
Em que pese a polêmica no tocante a natureza jurídica, podemos, didaticamente, conceituar consumidor com base no artigo 2º do CDC - consumidor é toda pessoa física ou jurídica, que adquire ou utiliza, um produto ou serviço na qualidade de destinatário final. Com isto, toda pessoa física ou individual, ou mesmo a pessoa jurídica, desde que posta na condição de destinatária final, pode ser considerada consumidora.
Saliente-se que, a expressão destinatário final serve para indicar aquele que figura no fim da cadeia produtiva, ou seja, aquele que cria a demanda a partir de suas necessidades e desejos, e para quem a produção é voltada, utilizando o bem para consumo, e não para insumo (agrega o bem à sua atividade produtiva).

No tocante ao conceito de fornecedor, este faz-se presente no art. 3º do CDC. Pela leitura do artigo, pode-se notar com clareza que, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, que vai ao mercado de consumo ofertar seus produtos ou serviços, á qualquer pessoa que se disponha a adquirí-los, mediante remuneração.

Com base no cenário acima descrito, tem-se que, todo contrato de oferecimento de empréstimo de dinheiro, com a obrigação de remuneração por meio de juros, feito por instituição financeira (fornecedora) a uma pessoa que se enquadre na condição de destinatário final deste crédito (consumidora), pode ser entendido como contrato de empréstimo bancário ao consumidor.
Sendo assim, tal contrato encontra-se imergido na disciplina principiológica do CDC, possuindo ainda, requisitos contratuais bastante próprios e definidos.

4. DISCIPLINA JURÍDICA DO CDC

O microssistema legal criado pelo CDC consiste na consagração de seus princípios basilares, os quais irradiam e influenciam, não só a produção das regras, como também condicionam sua interpretação.

No tocante à seara consumerista, que é regida por uma lei essencialmente principiológica (CDC), os princípios adquirem ainda maior importância assim como sua interpretação sistemática.

A partir desta concepção podemos identificar alguns princípios basilares do sistema consumerista, de suma importância para o presente estudo, uma vez que, devem ser respeitados em todos so contratos como os aqui estudados. Neste sentido, a despeito da presença de outros princípios na seara consumerista, pode-se apresentar como fulcrais, os seguintes :

a)Boa-fé – Princípio que pode ser traduzido no dever recíproco das partes de não tentarem se lesar ou obter vantagem indevida. As regras e premissas contratuais e extracontratuais, bem como, a oferta e as reclamações devem sempre estar pautadas nesta cláusula geral de boa-fé. Sucintamente, poderíamos falar que a boa-fé nos consumidores deve corresponder ao binômio honestidade e fidelidade para com seus fornecedores; em contrapartida, estes fornecedores, devem sempre ter em vista o respeito e a qualidade dos seus produtos postos no mercado de consumo. Esta dialética pautada no respeito entre as partes da relação de consumo é imprescindível, afinal ambas são lados opostos da mesma moeda, e não inimigas capitais.

b)Vulnerabilidade – É o estado que se encontram todos aqueles que vivem numa sociedade massificada. Implica na posição de desvantagem de alguém em face a outro alguém, sendo o primeiro suscetível à pressões e influências. Na expressão do professor Washington Trindade, vivemos buscando a satisfação das “necessidades socialmente sentidas”, mas no mundo contemporâneo e na sociedade capitalista, é mister atentar que todos somos vulneráveis à “fabricação destas necessidades” . Vale dizer que, muitos de nós já não podem discernir se buscam satisfazer necessidades (algo real e premente à vida humana) ou desejos (algo dispensável realmente mas indispensável no inconsciente coletivo pelo trabalho da mídia de “criar” novas “necessidades”). Neste sentido, formamos todos uma “massa de vulneráveis”.
Este binômio (boa-fé/vulnerabilidade), deve servir como vetor de interpretação de todas as regras contidas nos contratos de consumo, em especial, na análise dos contratos de empréstimos bancários voltados para consumidores. Estes merecem especial proteção face á sua extrema deficiência técnica na compreensão deste tipo de contrato, aliada a necessidade moderna de contratação de crédito, o que já se mostra possível de identificá-los, com o que a moderna doutrina denomina de “hiper vulneráveis”
.
A despeito de toda uma sistemática criada pelo CDC para proteção contratual do vulnerável (a exemplo das regras contidas nos art. 46, 47, 48 e 51), o legislador consumerista reservou um artigo em especial para traçar alguns requisitos obrigatórios para o fornecedor de crédito ao consumidor. Vale dizer que, a despeito da aplicação subsidiária das regras referentes ao contrato de mútuo presentes no Código Civil, o CDC estabelece regras inafastáveis para os contratos de mútuo feneratício voltados para o consumidor.

Reza o art. 52 do CDC que, nos contratos postos a disposição do consumidor, onde o objeto refira-se a outorga de crédito ou financiamento, o fornecedor deve informá-lo previamente sobre:

a) Preço do produto/serviço
b) Taxa de juros incidentes e CET (custo efetivo total)
c) Acréscimos legalmente previstos
d) Número e periodicidade das prestações
e) Soma total do valor a ser pago, com e sem, o financiamento.

Tais requisitos são de suma importância para preservar o consumidor em sua vulnerabilidade. Informar o consumidor acerca do produto ou serviço a ser consumido, e tentar diminuir o abismo técnico e informacional que existe entre consumidores e fornecedores, em especial nos assuntos financeiros, é requisito de eficácia de qualquer contrato de consumo nos moldes do art. 46 do CDC.
Vale lembrar ainda que, num país de um enorme contingente de analfabetos funcionais como o Brasil, tais informações devem ser prestadas de forma a possível e correta compreensão dos seus destinatários – consumidores ou potencial consumidores (visto que a informação deve ser prévia ao contrato).

5. CONCLUSÕES

Ante ao exposto, é possível afirmar que o contrato de empréstimo bancário ao consumidor (como popularizou-se o mútuo feneratício concedido ao mutuário na condição de destinatário final), requer uma visão sistêmica do universo consumerista e aplicação rígida das normas nele contidas para a preservação do vulnerável e do mercado de consumo sustentável.

BIBLIOGRAFIA

CASADO, Márcio Mello. Proteção do Consumidor de Crédito Bancário e Financeiro. Biblioteca do Consumidor – volume 15. São Paulo:RT, 2006.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2007.
MARIMPIETRI, Flavia. Pressupostos para a Revisão dos Contratos de Consumo. Salvador: EGBa, 2008.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2004.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. São Paulo: Método, 2008.